domingo, 13 de dezembro de 2009

UM ESTALO DENTRO DO PEITO - MEMORIAL DE LEITURA - Elisa Alves





“A escrita é um mundo emaranhado
de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras
- limiar de entrada de ancestral caverna
que é o útero do mundo e dele vou nascer.”
Clarice Lispector



Está uma tarde fria. Está uma tarde feia. Chove tanto lá fora! Susana está em seu quarto. Os pingos da chuva batem na vidraça. Plic, plic, plic.”

Foi este o primeiro texto que li. Ele era o início da primeira história da cartilha que as professoras da escolinha seguiam. Nós líamos em coro, marcando o ritmo, como se cantássemos (as sílabas grifadas representam as mais fortes, na nossa cantiga). Era uma escolinha que funcionava na casa de duas moças. Uma terceira se juntava a elas na hora da aula e estava formado o trio que tinha a missão de ensinar a ler aquele grupo de crianças, cujos pais achavam que sete anos era uma idade um pouco tardia para começar. E minha mãe estava entre eles!

Mamãe não conseguiu vencer a escola. Não resistiu à palmatória, associada à necessidade de trabalhar desde criança. Assim, para ela, chegar ao fim do tempo destinado à escola era a vitória mais significativa da vida, e ela ardentemente desejava isso para mim!

Na escolinha, então, as professoras me ensinaram a ler palavras nos livros. E os colegas – ali mesmo – me ensinaram a ler a cor da pele e a discriminação. Uma das lições me deu muito prazer. A outra me fez sofrer.

De qualquer forma, foi uma bênção ter aprendido. Eu era filha única, e minha mãe saía para trabalhar em casas de família, passando dias fora e me deixando com algumas babás, que nunca duravam muito tempo. Nós morávamos no Gama (cidade periférica do Distrito Federal) e mamãe trabalhava em Brasília (Plano Piloto, para os íntimos). Eu era calada, quieta, tímida, não me dava bem com as babás que, por sua vez, não faziam nenhum esforço para me cativar. Não que brigássemos. Apenas minha mãe ficava insatisfeita com o serviço e dispensava uma após a outra.

Devido a isso, foram muitos os períodos em que fiquei sozinha, mesmo. Já matriculada no ensino fundamental de uma escola pública bem perto de nossa casa, eu ia para a aula à tarde e não gostava de televisão. Mas adorava livros! Nessa época, minha mãe comprou, de um ambulante, uma coleção de histórias clássicas infantis. Eram quatro livros pequenos, mas volumosos, guardados em uma casinha de madeira. Era lindo! E mais lindo ainda era quando, em alguma manhã ensolarada de domingo, mamãe se sentava comigo na porta da cozinha e lia para mim. Essa é uma das lembranças mais luminosas de minha vida. E não tenho certeza se a luz e o calor que ainda me são tão vivos vinham do sol incidindo sobre nós ou se do raro gesto de carinho e cuidado.

Houve um outro, uns três anos depois. Era raro que saíssemos juntas, mas naquela tarde, num dia de semana, eu estava com mamãe andando pelo Setor Comercial Sul de Brasília – mais especificamente no Conic. De repente, quando passávamos em frente a uma livraria, ela decidiu entrar e me mandou escolher um livro! É impossível explicar, em poucas palavras, o que houve comigo. Até hoje sinto o mesmo deslumbramento quando entro em qualquer livraria. Eram tantos livros ao meu redor... Parecia um castelo encantado, com peças mágicas espalhadas pelas paredes, cada qual com mundo dentro de si. E eu tinha que escolher uma! Tomada de desejo e insegurança, e com medo de aborrecer mamãe com uma possível demora, li alguns títulos e escolhi: “Manu, a menina que sabia ouvir”, de Michael Ende. Escolha acertadíssima! Uma mensagem de preservação da vida e das relações pessoais disfarçada numa intensa aventura de ficção. Tempos depois, já adulta, descobri uma outra tradução do livro – mais densa, por sinal – intitulada “Momo e o senhor do tempo”. Li também e renovei minhas impressões.

Voltando à minha infância, esses eram os meus livros. Havia outros, que eu nem sei por que tínhamos, ou de onde vieram, mas que não eram infantis. De vez em quando mamãe trazia alguma revista da casa onde trabalhava. A escola fazia empréstimos com muitas restrições, mas eu logo descobri a biblioteca pública. Foi uma riqueza! Semana após semana lá estava eu, renovando ou substituindo os empréstimos.

Assim, na solidão de minha infância, os livros me fizeram companhia, e eu passei a considerar que ler era a coisa mais gostosa do mundo! Meu coração estalava de prazer.

Isso permaneceu assim pela infância e adolescência. Um dia – eu com doze ou treze anos – mamãe entendeu que eu deveria ler mais! Retirou da prateleira A Escrava Isaura e O Coronel e o Lobisomem. Só então eu percebi que ela não sabia que eu lia, não sabia do que eu gostava. Mas eu era calada. Não discuti. Peguei os livros e tentei lê-los. Fui avançando linha após linha sem entusiasmo, e era como se não os estivesse lendo. Tive, assim, a primeira lição de que nem todo livro é legal. Anos mais tarde voltei a esses livros e os devorei. Era mais uma prova dos efeitos do tempo sobre a vida da gente.

Na escola, não me lembro de nenhum trabalho com livros no Ensino Fundamental. Mas eu nem pensava nisso, não sabia que deveria haver. Ninguém falava em leitura, e eu nem tinha com quem dividir meu entusiasmo com os livros.

Mas no Ensino Médio, fazendo o Curso Normal, uma professora nos mandou ler Jorge Amado. Não me lembro do trabalho que fizemos com o livro, mas eu me apaixonei. Foi o livro Mar Morto – uma coisa deliciosa! Depois fui procurando as outras obras dele e lendo por puro prazer.

Eu era militante da Pastoral da Juventude – um movimento da Igreja Católica, adepto da Teologia da Libertação, que defendia a “opção preferencial pelos pobres e pelos jovens”. Para mim, ser professora era um modo de fazer bem às pessoas. Era minha militância.

Enquanto estudante, eu adorava Matemática, até conhecer a Física no 1º ano do Curso Normal. Fiquei dividida. As duas eram apaixonantes, mas eu precisava escolher uma para estudar na faculdade... E então, contra todas as expectativas geradas por esse triângulo amoroso, quando terminei o Ensino Médio, prestei vestibular para o curso de Letras!

Já me explico: foi o bichinho da pesquisa que me picou. Eu queria compreender um problema que identifiquei durante o Curso Normal. É que, na nossa turma, quase ninguém gostava de escrever as redações que nossa professora exigia. Os textos valiam nota e muitas colegas chegavam, no dia da entrega, sem ter conseguido escrever nada. Um dia uma delas me pediu para fazer um texto, ali na sala, pra ela. Não me recusei e isso acabou virando hábito: eu escrevia diversas redações a cada data marcada, para várias colegas em apuros, sem perceber que eu mais as atrapalhava que ajudava – se levarmos em consideração que elas receberam seus diplomas de professoras. De qualquer forma, nossa professora é quem deveria perceber as limitações de sua estratégia de ensino de redação, mas essa é uma outra história. O fato é que, ao iniciar o tempo do estágio, pude perceber que dificuldades na escrita relacionadas ao desejo e às ideias que devem ser apresentadas não são inerentes às pessoas. As crianças das turmas em que atuei adoravam inventar histórias. Se tinham que escrever, escreviam felizes, ansiosas para mostrar o que fizeram. Mas então, por que as moças quase professoras sofriam tanto para escrever? Que incidente no percurso fez com que elas afirmassem tão categoricamente que não sabiam escrever? Em que momento da vida escolar ocorre esse estrangulamento do desejo de registrar o que se pensa? Era isso que eu queria descobrir e que me levou ao curso de Letras. Mais que descobrir uma explicação para o problema, eu queria contribuir para sua solução. Como um personagem de Isabel Allende, eu sofria de “juventude em excesso. Mas todo mundo sara disso”.

Estudar Letras foi delicioso, é claro: tive muito o que ler. Consegui levantar algumas respostas para o problema que me levou até ali, e até algumas pistas sobre a solução. E mergulhei de vez no mundo dos livros. Descobri a vertigem de Clarice Lispector e Autran Dourado. Enxerguei melhor Machado de Assis. Embriaguei-me com Lygia Fagundes Telles. Deixei-me levar por Cecília Meireles, Mário Quintana e Fernando Pessoa. Perdi-me nas veredas de João Guimarães Rosa. Encontrei novos caminhos em Graciliano Ramos.

Foi um tempo de intensa paixão!

Tão intensa que eu quase me esqueci de que havia vida além dos livros. Eu começava a preferir a companhia dos livros à das pessoas!... Mas fui salva em tempo. Cheguei bem na beira do abismo, e um amigo me puxou de volta, com meu coração estalando.

Terminei o curso de Letras, comecei a lecionar Língua Portuguesa, e continuei lendo – tentando arduamente manter o equilíbrio entre essa paixão e a vida real. A leitura interfere em minha prática pedagógica, em meu jeito de amar, de falar, de dançar, de cantar. Vejo o mundo sob a lente das letras, como se as páginas de tudo o que li e leio fossem de celofane, e se estendessem sobre meus olhos. Gostei de absolutamente quase tudo o que li. Gosto de românticos, realistas, parnasianos e futuristas. Gosto de Paulo Coelho, Paulo Leminski, Paulo Freire. Gosto tanto de Vygotsky que seria amante dele... Gosto de Fernand Braudel, Moacir Gadotti, Pedro Demo, Edgar Morin, Celso Pedro Luft, Wanderlei Geraldi, Sírio Possenti, Gustavo Bernardo, Marcos Bagno, Magda Soares, Marisa Lajolo. Gosto de Ziraldo, Pedro Bandeira, Ana Maria Machado, Ruth Rocha.

Há uma leitura específica para cada dia, para cada maneira de sentir e de estar. Assim, escolho livros de acordo com o que necessito: livros para descansar – como Paulo Coelho; livros para acordar minha alma e me ver cercada e invadida por um fogo intenso – como Clarice Lispector; livros para mergulhar numa quietude densa e úmida – como Cecília Meireles; livros para quando estou inquieta e divertida – como Paulo Leminski; livros pelo prazer do conhecimento – como Bourdieu. Qualquer que seja minha escolha, meu coração ainda estala.

Muito ao contrário do que li, aos seis anos, na minha cartilha, para mim, não há tardes frias e feias. Na verdade, se agora moro no interior, sempre considero a chuva uma bênção. E os livros me dão luz e calor. Como Odara e Bruno, meus filhos, a leitura é parte de mim, inerente. Porém, diferentemente de para com eles, não é uma relação de amor. É como a relação que tenho com minha voz, com minha cor, com meu corpo. É o que eu sou.


Um comentário:

  1. Quando nos permitimos ir além dos sentidos,encontramos o alimento do nosso eu.
    Este eu que apenas meus ouvidos escutam conseguem me levar a degustar o que apenas nos livros encontro, e apenas eles hoje conseguem me encantar. um abraço querida, estou no face.
    CRISTIANE DA PENHA ALVES

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